segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Para sempre Maluco Beleza

Muito já foi dito e ainda será escrito sobre Raul Seixas.

O baiano mais abusado do rock and roll brasileiro deixou órfãos milhares de fãs e um legado inesquecível.

E pensar que no Nordeste quase ninguém sabia o que era aquilo que aquele magrelo topetudo tanto gostava. A ponto de fundar em Salvador um fã-clube do rei do rock Elvis Presley e tentar sobreviver na carreira artística como crooner de uma banda chamada Raulzito e os Panteras.

Nessa época de sucesso remoto, Raul e seu grupo gravaram um disco pela Odeon, que resultou em nada. Entre descrente e decepcionado, o baiano voltou a Salvador e logo veio para o Rio de Janeiro, trabalhar como produtor de discos de artistas como Jerry Adriani, Renato e Seus Blue Caps e o Trio Ternura na CBS.

Em 1970, gravou com a participação de Sérgio Sampaio, tão magro e abusado quanto ele, o álbum "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta: Sessão das Dez". Gastou muito mais do que o previsto no orçamento de produção. Perdeu o emprego na CBS. E foi nessa mesma época que surgiu Paulo Coelho (ele mesmo, o mago) no caminho de Raul Seixas.

Paulo fazia uma revista hippie underground chamada 2001 e um de seus artigos (todos escritos por ele, com pseudônimos) chamou a atenção de Raul, que um belo dia o convidou para escrever uma letra. Sem experiência no assunto, Paulo Coelho voltou com o que o Maluco Beleza descreveria como um "bestialógico hippie e absurdo". E combinaram de fazer, juntos, letra e música.

O que se viu a partir daí foi o nascimento de Raul Seixas como o rei do rock and roll brasileiro dos anos 70.

Na última edição do já decadente Festival Internacional da Canção, em 1972, eis que o Maracanãzinho é surpreendido quando o baiano canta "Let Me Sing, Let Me Sing", uma mistura explosiva de rock and roll com baião. O povo delira e canta, vendo o magrelo topetudo rebolar como Elvis Presley.

Let me sing, let me sing
Let me sing my rock and roll
Let me sing, let me sing
Let me sing my blues and go
Tenho quarenta e oito quilo certo
Quarenta e oito quilo de baião
Não vou cantar como a cigarra canta
Pois desse meu canto eu não me abro mão
Ele também inscreveu e classificou outra música - "Eu sou eu, Nicuri é o Diabo". E a participação de Raul no FIC foi um espanto. De repente, todo mundo queria saber de onde vinha aquele talento todo, aquela força toda. André Midani, sempre ele, não pensou. Ofereceu-lhe um contrato e ele foi integrar a "seleção nacional da música" na Philips. Para experimentar, dois compactos: o primeiro com "Let Me Sing, Let Me Sing" e o segundo com "Ouro de Tolo".

A música estourou no país inteiro e Raul caiu no gosto popular. Fez uma apresentação memorável no Phono 73 no Anhembi, pintando pela primeira vez no próprio corpo o símbolo da Sociedade Alternativa. Gravou o disco "Krig-Ha Bandolo" e rapidamente se transformou num campeão de vendagens.

Mas a Philips não fazia idéia do que Raul e Paulo Coelho tinham em mente. Eles queriam fazer da Sociedade Alternativa algo além do símbolo que o roqueiro pintara em si mesmo com tinta vermelha. O problema é que a Sociedade Alternativa era totalmente anarquista e baseada na doutrina satanista de Aleister Crowley.

Chegaram a pensar em construir em Minas Gerais a comunidade alternativa Cidade das Estrelas. O movimento foi porém considerado subversivo pelo governo militar. Raul, Paulo e suas respectivas esposas foram "convidados a se retirar" do Brasil e foram morar nos EUA.

Voltaram ao país em meados de 1974 e abriram o leque para o mistiscismo oriental. Sob a égide do Bhaghawad-Gitâ, lançaram "Gita", com a faixa-título puxando o disco de maior repercussão na carreira do roqueiro. Raul virou figurinha fácil no Fantástico, da Rede Globo, e uma das músicas do álbum entrou na trilha sonora da novela "O Rebu".



Cada vez mais empapuçado de drogas (maconha, cocaína, ácido e outros baratos), Raul foi convidado e aceitou participar do festival Hollywood Rock, produzido por Nelson Motta e que aconteceu no verão de janeiro de 75 no campo do Botafogo, em General Severiano. Com uma banda excepcional formada por Fredera (guitarra), Gustavo Schroeter (bateria) e Arnaldo Brandão (baixo), Raulzito arrebentou no encerramento do festival e levou a platéia à loucura quando ao final de "Sociedade Alternativa", pegou um papiro e, em alto e bom som, iniciou um discurso sobre as leis anarquistas.

A lei do forte
Essa é a nossa lei
E a alegria do mundo
Faze o que tu queres, que há de ser tudo da lei
Faze isso e nenhum outro dira não
Pois não existe Deus se nao o homem
Todo o homem tem o direito de viver a não ser pela sua própria lei
Da maneira que ele quer viver
De trabalhar como quiser e quando quiser
De brincar como quiser
Todo homem tem direito de descansar como quiser
De morrer como quiser
O homem tem direito de amar como ele quiser
De beber o que ele quiser
De viver aonde quiser
De mover-se pela face do planeta livremente sem passaportes
Porque o planeta é dele, o planeta é nosso
O homem tem direito de pensar o que ele quiser, de escrever o que ele quiser
De desenhar de pintar de cantar de compor o que ele quiser
Todo homem tem o direito de vestir-se da maneira que ele quiser
O homem tem o direito de amar como ele quiser
Tomai vossa sede de amor, como quiseres e com quem quiseres
Ha de ser tudo da lei
E o homem tem direito de matar todos aqueles que contrariarem a esses direitos
O amor é a lei, mas amor sob vontade
Os escravos servirão
Loucura não? Em pleno governo Médici, terror comendo solto, e Raul solta esse petardo - ainda mais num show de rock? E coincidentemente, a partir daí sua carreira entra em fase irregular.
Nesse mesmo ano ele lançou "Novo Aeon", que ele confessou anos mais tarde ser o seu disco predileto. Tinha realmente faixas muito boas como "Rock do Diabo" e "Tente Outra Vez", mas alguma coisa já faltava. Depois de mais um álbum - "Há 10 Mil Anos Atrás", brigou com Paulo Coelho, que foi fazer letras para Rita Lee.
Com um novo parceiro - Cláudio Roberto - lançou mais um bom disco, "O Dia em que a Terra Parou". Mas as gravadoras passaram a boicotá-lo e ele ressurgiria com a música "Carimbador Maluco" (Plunct Plact Zuumm), do especial infantil homônimo exibido pela Rede Globo. Mas as drogas e o álcool o punham cada vez mais à nocaute.
Seus últimos hits foram "Cowboy Fora da Lei" e "Pastor João e a Igreja Invisível", este último com Marcelo Nova, que tinha em Raul sua referência-mor no rock and roll e com quem compunha em parceria no disco "A Panela do Diabo".
Lamentavelmente, aos 44 anos, num final à Elvis Presley, Raul Seixas faleceu de complicações ligadas ao álcool. E como acontece com todo artista que desperta curiosidade nos fãs mais jovens, o baiano continua cultuado. O "Baú do Raul" segue revirado em busca de novas canções que o tempo não apaga. E o magro abusado continuará sempre sendo essa "Metamorfose Ambulante". Com opinião sempre formada sobre tudo. Inclusive o infinito.
"Já me borrei de tanto rir ouvindo
O infinito sendo explicado
Se sendo é um verbo
Prefiro ficar sendo calado"
(Raulzito)

Um comentário:

Anônimo disse...

Em 1975 o presidente era o Geisel e não o Médici.