sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

O Canto de Um Povo

Aproveitei a manhã desta sexta-feira para resolver um problema particular e, antes de fazê-lo, passei na Livraria Saraiva para comprar um livro sobre Copa do Mundo e outro sobre JK (brevemente alvo de futuros tópicos). E me deparei com uma edição especial, luxuosíssima, CD e DVD do Festival Phono 73, realizado em três noites de maio daquele ano, em São Paulo. Nem vi preço. Comprei no ato.

Iniciativa do irrequieto francês André Midani e seus assessores da Philips, o Phono 73 foi um festival sem prêmios - um contraponto com a bateria de espetáculos deprimentes que começara em 67 no Festival da Record e que pouco a pouco excluiu os principais artistas da MPB desse tipo de evento.

A Philips se orgulhava de possuir a "seleção nacional da música". Excetuando-se Milton Nascimento, da EMI e Roberto Carlos, artista da CBS. Mas na gravadora de Midani, batiam ponto ninguém menos que Elis Regina, Ivan Lins, Tim Maia, Toquinho e Vinícius de Moraes, Caetano Veloso, Jorge Ben, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Luiz Melodia, Erasmo Carlos, Sérgio Sampaio, Raul Seixas, Wilson Simonal, Chico Buarque, MPB-4, Fagner, Mutantes, Rita Lee, Nara Leão e muitos outros.

A proposta do Phono 73 era audaciosa, embora fruto de uma jogada de marketing da Philips justamente para fazer de seu cast o mais representativo de nossa música. Unir artistas de estilos musicais opostos para duetos inéditos e apresentar os trabalhos de outros que não eram tão populares quanto a maioria dos acima citados.

O lugar escolhido para o evento fora o recém-inaugurado Palácio das Convenções do Anhembi - 3.500 lugares absolutamente lotados em cada um dos três dias do evento.

O que pode ser ouvido (e agora visto, porque foram reunidos 35 minutos em imagens inéditas filmadas por Guga de Oliveira, num DVD) neste relançamento da Universal Music é um momento bárbaro da MPB, ainda que incompleto.

O Brasil vivia tempos de repressão intensa e a cultura infelizmente fora atingida em cheio. Diversos de nossos cantores, engajados na oposição aos militares, tiveram que experimentar as agruras do exílio. E Midani, disposto a fazer da Philips a maior gravadora do Brasil, lhes estendeu a mão, ajudando-os a voltar.

Em vários momentos, o Anhembi foi um barril de pólvora. Elis Regina sentiu na pele as conseqüências de sua participação na Olimpíada do Exército. Foi acusada injustamente de traição e execrada por Henfil, que a colocou no temido "Cemitério dos Mortos-Vivos" do tablóide de oposição Pasquim.

Tensa, a Pimentinha foi cantar "Cabaré", de João Bosco e Aldyr Blanc, e ao adentrar o palco foi recebida pela platéia com uma salva de vaias. Caetano Veloso tomou as dores da gaúcha e desafiou a platéia no ato. "Respeitem a maior cantora do Brasil!", disse o baiano.

Caetano, como sempre pilhadíssimo, também defendeu a inacreditável parceria com Odair José, um ícone da brega-music, com quem dividiu "Eu Vou Tirar Você Desse Lugar", canção homenageando as prostitutas. Foi vaiado inapelavelmente e, na sua apresentação individual, deixou a platéia ainda mais irritada com uma versão quilométrica de "A Volta da Asa Branca".

Ele ainda soltaria duas de suas muitas pérolas: chamaria o festival de Caphono73 (sic) e em razão das vaias recebidas quando do dueto com Odair José, foi impiedoso ao dizer que "não existe nada mais Z do que a classe A".

Mas o momento mais polêmico e mais falado até hoje aconteceu quando Gilberto Gil e Chico Buarque, noutro dueto inédito, entraram para cantar "Cálice". Cantar não é bem o termo. O baiano proferia onomatopéias sem sentido e em meio à balbúrdia, Chico só falava a palavra Cálice (Cale-se, sacaram?). Os censores foram imediatamente para onde estava o técnico de som e mandaram cortar o microfone.

Visivelmente puto, Chico grita "MEU SOM!" e insere um "Arroz à grega", provocando aplausos da platéia. O compositor ainda consegue cantar a estrofe "Afasta de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue", antes de ter o som novamente cortado. O MPB-4 tenta ajudar trocando os microfones, mas os censores são implacáveis e Chico, frustrado, desabafa dizendo que "não queria mais aporrinhação, já que ele não poderia cantar Cálice e nem Anna de Amsterdam".

Como resultado, ele inicia uma furiosa versão de "Cotidiano" e fecha sua apresentação com um raríssimo roquenról (como ele pronuncia) de seu repertório - "Baioque". Enquanto encerra a canção, Chico solta um 'censura filha da puta' - não captado pelo microfone - e é ovacionado pelo Anhembi lotado.

Outras apresentações lendárias são do Maluco Beleza Raul Seixas, arrebentando em "Let Me Sing, Let Me Sing", "Loteria de Babilônia" e "As Minas do Rei Salomão". Em nítida provocação, Raulzito pinta no próprio corpo, com tinta carmim, o símbolo da Sociedade Alternativa e ainda brada "Está lançada aqui a semente de uma nova idade! É preciso gritar e cantar rock!" O baiano previu em 73 o que aconteceria por aqui apenas em 82.

Sérgio Sampaio, autor e cantor da sensacional "Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua", não deixa por menos em sua apresentação. Rebola provocativamente, simulando uma penetração e falando seguidas vezes o verbo "botar". Num país como o Brasil de 73, nada mais sexual e burlesco.

Mas os grandes vitoriosos - se é que pode dizer isso - foram Jorge Ben, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa. Os dois primeiros arrebentaram numa jam session que contou com a participação maciça dos outros artistas e que seria repetida em outro episódio (do qual vocês saberão brevemente).

Gal e Bethânia mandaram muito bem individualmente - a primeira ganhou a platéia com uma versão para "Trem das Onze" e Bethânia mostrou sua potência vocal costumeira. Convidadas para cantar juntas a belíssima "Oração de Mãe Menininha", de Dorival Caymmi, aceitaram sem pestanejar e surpreenderam a platéia quando, ao fim da música, beijaram-se na boca.

Ficou com vontade de comprar esta edição especial de Phono 73? Se eu fosse você, não perderia a chance de conhecer aquele que, no manifesto que fazia parte do encarte do primeiro lançamento do festival ainda em vinil, dizia que aquele era O Canto de Um Povo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que história é essa?
Será que é aquela em que o Eric Clapton desistiu de tocar durante um encontro na casa de alguém com os brasileiros quando estava de férias?