terça-feira, 1 de maio de 2007

Paiol de pólvora

Em 1973, a Globo produziu a primeira novela em cores da TV brasileira: O Bem-Amado!

Escrito por Dias Gomes, o folhetim se passava na fictícia Sucupira, no interior da Bahia, onde reinava Odorico Paraguaçu, um dos imortais tipos de Paulo Gracindo, graças a pérolas como primeiramente, segundamente e terceiramente, afora muitos outros assassinatos à gramática que caíram no gosto popular.

Além do folclórico Odorico, as irmãs Cajazeiras eram um show, bem como o gago e esparro do prefeito, Dirceu Borboleta, e o bandoleiro Zeca Diabo, em ótima atuação de Lima Duarte.

Porém, nem tudo foram flores para a novela, exibida no horário de 10 da noite. Dias Gomes era um notório comunista e vira e mexe tinha problemas com a censura (o maior de todos aconteceu em 1975, quando tinha escrito Roque Santeiro e às vésperas da estréia, a novela não pôde ir ao ar, dando à Globo um prejuízo estimado na época de 400 mil dólares - o que fez Roberto Marinho escrever um editorial furibundo contra os milicos, lido por Cid Moreira no JN).

Para complicar as coisas, a música-tema escolhida pelo autor era Paiol de Pólvora, de Toquinho e Vinícius. A letra tinha um cunho político fortíssimo - e foi imediatamente proibida de entrar na trilha sonora e especialmente na abertura da novela.

Estamos trancados no paiol de pólvora
Paralisados no paiol de pólvora
Olhos vedados no paiol de pólvora
Dentes cerrados no paiol de pólvora

Só tem entrada no paiol de pólvora
Ninguém diz nada no paiol de pólvora
Ninguém se encara no paiol de pólvora
Só se enche a cara no paiol de pólvora

Mulher e homem no paiol de pólvora
Ninguém tem nome no paiol de pólvora
O azar é sorte no paiol de pólvora
A vida é morte no paiol de pólvora

São tudo flores no paiol de pólvora
TV a cores no paiol de pólvora
Tomem lugares no paiol de pólvora
Vai pelos ares o paiol de pólvora


Isto posto, a Globo optou por substitiur a música censurada por O Bem-Amado, dos mesmos Toquinho e Vinícius, que acabou por ficar na vinheta de abertura da novela. Porém, se os censores fossem bem mais inteligentes e lessem nas entrelinhas, também censurariam a letra, que tanto quanto a anterior, tinha forte sentido político.

Quando o sol da manhã vem nos dizer
Que o dia que vem pode trazer
O remédio pra nossa ferida
E o meu coração

Quando o vento da noite vem lembrar
Que a morte está sempre a esperar
Em um canto qualquer desta vida
Quer queira, quer não

Espanto
Na calma
Coragem no medo
O vai e vem
O corpo sem alma
Ainda na noite o mal e o bem

A noite no dia
A vida na morte, o céu no chão
Pra ele, vingança
Dizia muito mais que o perdão

O riso
No pranto
A sorte no azar, o sim no não
Pra ele, o poder
Valia muito mais que a razão


6 comentários:

Alessandra Alves disse...

você quer demais, né? procurar traços de inteligência naquele povo seria como buscar pilotos de fórmula 1 com voz bonita. já viu? eu, não.

mas me chamou a atenção um detalhe dessa letra. a presença daquele componente, daquela verdadeira entidade eternizada nas músicas engajadas, principalmente as do final dos anos 1960. sabe quem? "o dia". como esse povo gostava de exaltar o dia que vem, o dia que vai chegar. deu no que deu: ficamos esperando o dia, feito carolinas na janela, e o dia levou mais de vinte anos pra chegar...

Alessandra Alves disse...

em tempo: estou adorando sua série de novelas dos anos 70. posso acalentar esperanças de ver ronalo resedá por aqui, cantando a abertura de "marrom glacé"?

Rodrigo Mattar disse...

Se deve. Pedido feito, pedido aceito!

Anônimo disse...

Pô Mattar ,mas também a primeira musica era um chute no saco né, acho que os ditadores pensavam assim:
- Disfarçado pode!

Jonny'O

L-A. Pandini disse...

A trilha sonora d'O Bem Amado, por sinal, é ótima. Foi relançada em CD há alguns anos. Vale a pena tê-la.

Luly disse...

Querido amigo, nessa época eu morava pra lá de Sucupira, não tinha energia elétrica e nem televisão em casa, não! hahaha
Mas me lembro bem do seriado, acho que teve reprise da novela depois de alguns anos também.
Os personagens até hoje são lembrados, eu tenho 3 tias solteiras que ainda são chamadas de cajazeiras(sem conhecimento delas, claro). Também o cemitério lá da nossa cidadezinha precisava de defunto pra inaugurar a capelinha de velório, lembrando uma das histórias da novela.
Muito bom recordar isso tudo!