Ontem de madrugada assisti parte de “Beijo no Asfalto”, um dos muitos filmes baseados em obras do excepcional dramaturgo Nelson Rodrigues. Ver essas produções é uma experiência e tanto principalmente para quem, como eu, não leu todas as suas obras – a minha única exceção é “Asfalto Selvagem”, que originou a minissérie e o filme “Engraçadinha, seus amores e seus pecados”.
Em suas obras, Nelson desconstrói de cabo a rabo os valores da família brasileira. Nada do que é descrito foge à realidade. Há, sim, filhos que amam as mães, pais com tesão pelas filhas, traições, estupros, canalhas, prostitutas, pessoas incorruptíveis e toda a sorte de personagens. Trata-se de “A Vida Como Ela É...” levada às últimas conseqüências.
E o que é mais interessante é que como já foi dito e descrito por muitos, ele não falava um único e escasso palavrão. Mentira: disse um quando uma amante (Yolanda Camejo, uma espanhola das Ilhas Canárias com quem se envolveu) ligou na residência de sua mãe ofendendo toda sua família.
Por isso mesmo quando se ouve e vê o festival de palavrões e sacanagens que norteia todos os filmes baseados em sua obra, todos pensam que o universo rodrigueano é sem-vergonha, despudorado, devasso, depravado. Não é por aí não.
“Vestido de Noiva”, por exemplo, é uma obra até hoje cultuada. Foi produzida em 1943, rapidamente adaptada para o teatro e elogiada, incensada como uma das mais brilhantes peças de todos os tempos. Alguns, como Manuel Bandeira, teriam dito que na primeira tentativa, Nelson atingiu a perfeição digna da obra-prima. E de quebra, todo mundo elogiou o filme produzido e dirigido por Joffre, o filho mais velho do dramaturgo, que tem Simone Spoladore no papel principal.
Como pode então ao longo dos 37 anos seguintes um autor ser tão perseguido quanto Nelson Rodrigues? Bem... nem todos os governos o incomodaram. O de Getúlio (o último, de curta duração) sempre o deixou quieto – no primeiro, deixavam as peças serem encenadas no Teatro Municipal. Mas Dutra o censurou e os militares (ora vejam... Nelson era reacionário, radical de direita) não o pouparam na mesma medida.
O autor morreria aos 68 anos, no dia 21 de dezembro de 1980, vítima de um problema crônico de coração e pulmão, fruto de anos de cafezinhos fumegantes acompanhados por mata-ratos como o lendário Caporal Amarelinho.
E quase três décadas depois, não é nenhuma surpresa que o autor seja mais reconhecido hoje do que era em sua época. Afinal das contas, ao que parece, as pessoas não estavam preparadas para reconhecer a sua genialidade e penetrar fundo no universo rodrigueano.
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