Ainda bem que a tradição ainda fala mais alto no carnaval carioca. Não fosse assim, e hoje o Rio de Janeiro não estaria feliz com o título inesperado da Unidos de Vila Isabel.
Todo mundo acompanhou o drama da agremiação que é um símbolo do samba na Cidade Maravilhosa, capaz de nos ofertar alguns dos mais belos hinos cantados nas avenidas dos desfiles, como "Quatro Séculos de Modas e Costumes", "Iaiá do Cais Dourado", "Sonho de Um Sonho", "Pra Tudo Se Acabar na Quarta-Feira", "Raízes", "Kizomba, Festa de Uma Raça" e outras obras-primas.
Em 2000, no carnaval dos 500 anos do descobrimento, a Vila embarcou numa viagem para o Grupo de Acesso, onde ficou quatro anos até ganhar em 2004 e voltar à elite ano passado, cheia de problemas e comemorando a permanência com um 10º lugar.
Incrível e felizmente a Vila renasceu e com um enredo que caiu no gosto dos componentes e da comunidade, derrotou a Acadêmicos do Grande Rio - que atingiu o seu melhor resultado usando o surrado tema da Amazônia para seu desfile.
Um resultado injusto da Acadêmicos do Projac? Sem dúvida, se pensarmos pela sexta posição da Unidos da Tijuca - a mais brilhante escola de todo o carnaval, com alegorias sensacionais - vide o abre-alas, o carro com vinte e um Fuscas de verdade e o incrível carro da discoteca, onde os bailarinos ora eram Tony Tornado, ora Elvis Presley, ora Michael Jackson.
Paulo Barros está para o carnaval do século XXI o que Joãozinho Trinta foi no século passado. Genial, inventivo, ele se supera a cada ano, mesmo apresentando enredos com nomes complicados. O samba de 2006 não foi dos mais brilhantes no CD tradicionalmente vendido antes do carnaval - aliás, era até um dos piores do ano. Mas na avenida, "casou" com o espetáculo.
Permitam-me, porém, voltar à Vila Isabel e seu surpreendente título.
No último dia 25, o articulista Emir Sader, da Agência Carta Maior, trouxe aos leitores um ótimo texto sobre o tema da escola do bairro de Noel Rosa e a situação atual da Latinoamérica.
E já que a Vila foi a grande campeã, que tal compartilharmos essa reflexão juntos?
O MUNDO PELO AVESSO
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti, América
(Emir Sader)
A escolha da Vila Isabel para enredo do Carnaval de 2006 não poderia ser mais feliz, por ser feita no momento em que o nosso continente se revela como o principal palco de resistência aos modelos exógenos de que tantas vezes nos falou Gabriel Garcia Márquez. Neste momento, vale a pena lembrar o que disse o escritor colombiano quando ganhou o Nobel, em 1982.
“A interpretação da nossa realidade com esquemas alheios só contribui para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários”. Fomos “descobertos” ou reiventados pelos colonizadores, que impuseram o sentido que mais lhes convinha à nossa história. “Insistem em medir-nos com o metro que se medem a si mesmos”, e assim se consideram “civilizados” e a nós, “bárbaros”. Não se dão conta que a busca da identidade própria é tão árdua e sangrenta para nós como foi para eles. Talvez os ex-colonizadores – hoje imperialistas – fossem mais compreensivos com nós - os “bárbaros” -, se olhassem melhor para o seu próprio passado, sem a mistificação com que o envolveram antes de exportá-lo para nós.
“A interpretação da nossa realidade com esquemas alheios só contribui para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários”. Fomos “descobertos” ou reiventados pelos colonizadores, que impuseram o sentido que mais lhes convinha à nossa história. “Insistem em medir-nos com o metro que se medem a si mesmos”, e assim se consideram “civilizados” e a nós, “bárbaros”. Não se dão conta que a busca da identidade própria é tão árdua e sangrenta para nós como foi para eles. Talvez os ex-colonizadores – hoje imperialistas – fossem mais compreensivos com nós - os “bárbaros” -, se olhassem melhor para o seu próprio passado, sem a mistificação com que o envolveram antes de exportá-lo para nós.
A América Latina e o Caribe reivindicam o direito de ter uma história própria, assim como temos uma cultura e um esporte próprios – tão admirados por eles. “A solidariedade com nossos sonhos não nos fará sentir menos solitários, enquanto não se concretize com atos de apoio legítimo aos povos que assumam a ilusão de ter uma vida própria na divisão do mundo.”
“Por que a originalidade que nos é admitida, sem reservas na literatura, nos é negada com todo tipo de suspeitas em nossas tão difíceis tentativas de transformação social?” Por que não nos permitir seguirmos nosso próprio caminho para a justiça social, que os colonizadores tiveram tanta dificuldades – eles também – para encontrar e ainda assim, com defeitos que cada vez mais ficam evidentes? Por que nos condenar a viver “como se não fosse possível outro destino, senão o de viver à mercê dos grandes donos do mundo”? “Este é, amigos, o tamanho da nossa solidão.”
A Vila Isabel desfila neste domingo (26) na passarela do sambódromo carioca com o tema “Soy loco por ti, América”, originalmente na música de Capinam e de Gil, reatualizando as citações do discurso com que Garcia Márquez recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 8 de dezembro de 1982 – já lá vai quase um quarto de século.
Poucos anos antes, em 1967, a América Latina e o Caribe se notabilizaram irreversivelmente diante do mundo com dois acontecimentos cuja dimensão ainda nos assombra: o lançamento de “Cem anos de solidão” e a morte do Che. Com um e com outro e com os dois, nosso continente conquistava o direito de ter sua própria identidade e sua própria história – uma luta que continua e que encontra, neste ano de 2006, razões novas para se consolidar.
A escolha da Vila Isabel não poderia ser mais feliz, por ser feita no momento em que o nosso continente se revela como o principal cenário de resistência aos modelos exógenos – mais um dos exemplos daqueles “esquemas alheios” – de que nos fala Garcia Márquez – e que “só contribui para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários”.
Aqui Bolívar é reivindicado, como o são Martí, Mariategui e o Che – alguns dos tantos que apontaram para nossa história com fonte direta do nosso destino e dos horizontes da nossa emancipação.“Soy loco por ti América” foi composto no clima de “Cem anos de solidão” e da morte do Che. “El nombre del hombre muerto, ya no se puede decirlo, quien sabe? Antes que o dia arrebente.” “El nombre del hombre es pueblo.”
Nesse continente mágico e heróico, a figura de Evo Morales vem se unir a de outros, para expressar sua diversidade, sua capacidade de erigir os interesses dos que foram massacrados pelos colonizadores – nos dois maiores massacres da história da humanidade, assim que chegaram: o extermínio das populações indígenas e a escravidão – em programas de transformação, de construção de identidades diversas e de horizontes de emancipação. Para que “estas estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham finalmente e para sempre uma segunda oportunidade sobre a terra.”
A Vila Isabel fará ecoar na noite de domingo, na Marquês de Sapucaí, esses velhos gritos da alma: “Soy loco por ti América, soy loco por ti de amores”.
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