segunda-feira, 28 de abril de 2008

Discos que já ouvi antes de morrer (XV) - Mutantes / 1969


O segundo trabalho dos Mutantes raramente é lembrado pelos críticos como um álbum bem-feito, no cenário musical brasileiro dos anos 60. Nada menos exato, pois o disco auto-intitulado, lançado pela Philips em 1969, cortou de vez o cordão umbilical que separava os garotos Serginho, Arnaldo e Rita da trupe tropicalista, uma vez que Gil e Caetano foram presos no fim de 68 - o que decretou o fim do movimento.

Entretanto, o ano que é celebrado por muitos como "aquele que não terminou" foi riquíssimo em experiências musicais para a rapaziada da Pompéia. Passaram por uma verdadeira prova de fogo na eliminatória paulista do FIC, como banda de apoio de Caetano Veloso em "É Proibido Proibir" e conquistaram a simpatia dos cariocas na apresentação da final nacional, com "Caminhante Noturno", música que rendeu ao maestro Rogério Duprat o Troféu André Kostelanetz como o autor do melhor arranjo do festival.

Pouco depois, o grupo seria convocado a ir para Cannes, no MIDEM, apresentar algumas de suas canções e isto precipitou o lançamento do segundo disco, que precisou ser concluído a toque de caixa no Estúdio Scatena, em São Paulo. Escolado no trabalho com os Mutantes, Manuel Barembein comandou a gravação, que contou com a presença de Dinho Leme tocando bateria. Dinho, para quem não sabe, é irmão do comentarista de automobilismo Reginaldo Leme, da Rede Globo, e já acompanhara o grupo no Festival Internacional da Canção.

"Caminhante Noturno" já estava pronta por causa do Festival e causou sensação em razão dos inúmeros efeitos sonoros, da voz robótica de Arnaldo falando "Rota de Colisão! Perigo! Perigo! É Proibido Proibir!" e os corinhos de "Bicha!" dirigidos a Johnny Dandurand, que aparecia de surpresa no palco do FIC para o caótico happening proposto por Caetano em "É Proibido Proibir".

Outra música também inscrita em festival e incluída no disco foi a ciranda lisérgico-roqueira "Mágica", que irritou a turma politizada que assistia o Festival da Excelsior porque era uma música, para eles, pueril demais para o Brasil de 1968 - mesmo com a citação a "Satisfaction", dos Rolling Stones, no fim da canção.

Avacalhação era com eles mesmos, tanto que "Dom Quixote", apresentada no Festival da Record com todos usando máscaras sinistras de borracha e smoking, evocava uma mistura de Dulcinéia com o Chacrinha e Sancho Pança.

A música inclusive teve que ter um verso trocado a pedido da Censura, mas os meninos e Rita Lee nem ligaram. Ao vivo, cantavam a letra como tinha sido escrita. No disco, um som fake de aplausos, encobria os versos censurados.

A jeca high-tech "2001", escrita por Tom Zé, é outra grande sacada do disco, misturando o futuro e astronautas com modinha de viola, o theremin tocado por Rita Lee e guitarras elétricas ao fundo. Foi outra música que o grupo inscreveu em festivais e que arrancou aplausos até dos que dela não gostavam.

"Não Vá Se Perder Por Aí" é outro clássico do grupo, com guitarras gritando e um vocal bem sacado de Rita e Arnaldo, que aparece com a voz totalmente diferente em "Dia 36", graças ao uso de uma voice box na saída de áudio de um órgão e de um efeito criado por Cláudio César, o Professor Pardal do grupo, que inventou o wooh-wooh, distorcendo e deixando o som do baixo como se estivesse vomitando.

As invencionices do grupo não se traduziam só na criatividade de Cláudio César. Com a ajuda do maestro Duprat, eles eletrificaram a doce "Banho de Lua", sucesso em fins dos anos 50 com Celly Campello e já esquecida em meio à cruzada tropicalista e das músicas de protesto. Fizeram de "Rita Lee" uma simpática canção, um mix de "Penny Lane" com "Ob-La-Di Ob-La-Da": com certeza algo que muita gente dos anos 80 / 90 não teve capacidade de conceber.

Ainda havia espaço para "Fuga Nº II", celebrada pelos fãs como uma das melhores músicas da história da banda, assim como "Qualquer Bobagem" (outra composição de Tom Zé), cantada... e gaguejada por Arnaldo Baptista, num dos bons momentos do disco.

Mas aquela que é considerada a maior ousadia do grupo no disco é "Algo Mais", que os Mutantes não tiveram o menor preconceito em gravar. Tratava-se de um jingle que eles compuseram para uma série de comerciais da Shell, estrelados por eles entre 68 e 69, e celebrado por Nelson Motta, que escreveu o texto da contracapa - onde aliás os três estavam caracterizados de alienígenas e com seis dedos em cada uma das mãos.

Cabe uma explicação: o disco quase se chamou O Sexto Dedo, nome de um filme de ficção científica visto pelos três e que inspirou a estranha foto tirada por Cynira Arruda. Felizmente a idéia não saiu do papel.

A centelha criativa que existia nessa época e que fez dos Mutantes uma referência musical no país, mesmo com o fim da Tropicália, rapidamente se esvaneceu. Com exceção de uma ou outra música nos três discos seguintes até 72, o grupo jamais seria o mesmo, mergulhando-se em trips egocêntricas que culminaram com a saída de Rita Lee e depois com a decadência da banda até o melancólico fim em 1978.

Ficha técnica de Mutantes
Selo: Polydor / PolyGram
Produção: Manuel Barembein
Gravado nos Estúdios Scatena em São Paulo, em dezembro de 1968
Tempo total: 42'43"

Músicas:

1. Dom Quixote (Arnaldo Baptista / Rita Lee)
2. Não Vá Se Perder Por Aí (Raphael Vilardi / Tobé)
3. Dia 36 (Johnny Dandurand / Mutantes)
4. 2001 (Tom Zé / Rita Lee)
5. Algo Mais (Mutantes)
6. Fuga Nº II (Mutantes)
7. Banho de Lua / Tintarella di Luna (B. Filippi / F. Migliacci - versão: Fred Jorge)
8. Rita Lee (Mutantes)
9. Mágica (Mutantes)
10. Qualquer Bobagem (Tom Zé / Mutantes)
11. Caminhante Noturno (Arnaldo Baptista / Rita Lee)

2 comentários:

Anônimo disse...

Fuga Nº II é "a" música deste álbum; incrível!!

Alessandra Alves disse...

Fuga nº II... Faz tempo que quero escrever sobre essa música. Coincidência: ouvi esse disco hoje de manhã!