terça-feira, 9 de maio de 2006

Puro Suco, Puro Futebol: o Carrossel Holandês

Falta exatamente um mês para o planeta respirar futebol.

Em 9 de junho, Alemanha e Costa Rica se enfrentarão em Munique na primeira das 64 partidas programadas para a Copa do Mundo de 2006.

Neste mesmo país, há 32 anos, uma seleção assombrou pela capacidade de jogar um futebol competitivo, forte, eficiente e sobretudo espetacular.

É claro, me refiro à Laranja Mecânica ou, para os mais desavisados, o Carrossel Holandês.


Toda uma geração de craques que explodiu no início dos anos 70 teve o seu embrião nas Eliminatórias para a Copa do México, em 1969. A Holanda foi mera figurante em seu grupo (que ainda tinha Bulgária, que foi pro Mundial, Luxemburgo e Polônia) e terminou em penúltimo - obviamente desclassificada.

Mas foi naquele ano que estrearam pela seleção jogadores de raro talento, como Rob Rensenbrink, Wim Suurbier, Wim Van Hanegem e um certo Johann Cruyff.



Então com 22 anos, o meia-atacante que foi levado por sua mãe para o Ajax para jogar futebol porque praticamente não andava, já era o cérebro de uma equipe que se consagrou pela objetividade e pelos inúmeros gols que fazia: o Ajax de Amsterdam, dirigido por Rinus Michels.

Tricampeões do Europeu de Clubes entre 1971 e 1973, eles deram seqüência à conquista do Feyenoord em 70, colocando a Holanda no mapa do futebol mundial.

Até àquela época, o país se orgulhava apenas de suas plantações de tulipas, de possuir um dos melhores circuitos do mundo - Van Drenthe, em Assen, considerado o templo da Motovelocidade, e por liberar o uso da maconha e do haxixe, além de um ambiente mais, digamos, arejado, com sex shops e tudo o mais.

Voltando ao que interessa, Michels reuniu a nata do futebol do país com a missão de recolocar a Holanda numa Copa do Mundo, o que não acontecia desde antes da II Guerra. Nas Eliminatórias européias, caíram no grupo 3 com a vizinha e eterna rival Bélgica. E com dois candidatos a sacos de pancada: Noruega e Islândia.

Dito e feito. A Bélgica de cara enfiou duas goleadas de 4 x 0 sobre os islandeses, desafiando o time de Michels a fazer melhor. E logo na estréia da seleção em 1º de novembro de 1972, uma sonora goleada por 9 x 0 contra a Noruega, que engrossaria o caldo em Oslo, perdendo apenas por 2 x 1.

Mas a Islândia colaborou: levou treze gols em dois jogos (8 x 0 no primeiro e 5 x 1 no segundo). A Holanda nem precisou vencer os belgas. Dois empates garantiram a tão sonhada vaga para a Copa graças ao saldo de gols: 22 contra 12 dos rivais, que terminaram as Eliminatórias sem sofrer um único gol.

No sorteio da Copa, em fins de 73, a Holanda caiu no Grupo 3, do bicampeão e cabeça-de-chave Uruguai, da Suécia, vice-campeã em 58 e da Bulgária, que na fase final da competição, jamais vencera uma partida.

E no que dependesse de Cruyff, Neeskens, Rep, Rensenbrink, Arie Haan e cia., continuariam em branco.

Vindos de trem, os torcedores holandeses invadiram e tomaram Hannover e Dortmund de assalto com suas camisas alaranjadas, seus cânticos de guerra divertidíssimos, centenas de litros de cerveja foram consumidos e muitos baseados foram acesos antes do primeiro jogo.

Para deleite da galera, a Holanda jogou o fino na estréia. E não foi só isso. Os dez jogadores de linha se movimentavam o campo inteiro, marcando, defendendo, correndo e atacando com uma disposição fora do normal. Era o que Michels chamava de "futebol total". Nenhum de seus jogadores tinha posição fixa. Versáteis ou polivalentes, estas são as melhores definições para os atletas.

Azar do Uruguai, que estreou com uma derrota por 2 x 0 na partida disputada em Hannover. Nem o talento do meia Pedro Rocha foi capaz de sobrepujar a intensa movimentação dos jogadores adversários em campo. O atacante Rep fez os dois tentos, um em cada tempo.

A Suécia, que tinha um bom time e com vários jogadores tarimbados em Copa pois estiveram em campo no México, quatro anos antes, deu trabalho e foi o único time que não sofreu gols da Holanda em todo o Mundial. Em contrapartida, a já eliminada Bulgária foi a primeira a sentir na pele a fome de bola do Carrossel.

Neeskens fez dois gols de pênalti no primeiro tempo. Rep e Krol ampliaram a vantagem e a Holanda ainda deu de bandeja um golzinho, contra, de Theo de Jong. O placar de 4 x 1 mostrou que eles não estavam ali pra brincadeira.

Na segunda fase, a Holanda teria uma pedreira: nada menos que o Brasil, tricampeão mundial, a Argentina, sempre uma adversária de respeito, e a Alemanha Oriental. E poderia ter sido pior porque a então DDR foi a primeira colocada do Grupo 1 mercê uma vitória por 1 x 0 diante dos anfitriões.

Em 26 de junho, no Parkstadion de Gelsenkirchen, a Holanda pegou a Argentina. Reza a lenda que Cruyff fez uma de suas maiores partidas com a camisa da seleção naquela ocasião. Ele abriu os trabalhos aos 10 minutos, com uma finta desconcertante no goleiro Carnevalli e mandando a bola para as redes portenhas.

Krol, provando que zagueiros também sabiam fazer gols, ampliou aos 25. No segundo tempo, uma chuva de filme de pirata alagou o campo. E quem disse que os holandeses se contentaram com o placar? Continuaram atacando sem parar, apesar das poças e da lama. Fizeram 3 x 0 com Rep e chegaram à goleada de novo com Cruyff, no último minuto.

Se a Holanda fora capaz de golear uma seleção do nível da Argentina, era bom ficar de olho no que aprontariam dali pra diante.

Quatro dias depois, a DDR não foi páreo para a Laranja Mecânica. Neeskens e Rensenbrink marcaram os gols que selaram a vitória holandesa. Com a vitória do Brasil sobre a Argentina por 2 x 1, as duas seleções que detinham a liderança com quatro pontos decidiram, em Dortmund, a passagem para a final.

O Brasil ainda tinha craques como Rivellino, Paulo César Lima, Jairzinho, Carpeggiani, Marinho Chagas e outros. Mas a campanha na Alemanha fora irregular, com dois empates sem gols, uma vitória sofridíssima sobre o Zaire e atuações de certo modo convincentes contra DDR e Argentina.

Mas o técnico Zagallo cometeu um erro ao subestimar a força de uma equipe que marcara, em cinco partidas, 12 gols, sofrendo apenas um - e contra!

Ousou fazer piada com o nome do craque Cruyff e disse que por causa do alaranjado do uniforme holandês, o meia-atacante poderia ser chamado de Crush - um popular refrigerante de laranja comercializado por aqui naquela época.

Deu no que deu...

Apesar de boas chances perdidas - Paulo César desperdiçou um gol incrível - a Holanda envolveu o Brasil, dominou as ações e não abriu o placar porque Leão mostrou ótimos reflexos num chute à queima-roupa de Cruyff no primeiro tempo. Ele só não evitou os gols de Neeskens, aos 5 do segundo tempo e do próprio Cruyff aos vinte.

Luiz Pereira perdeu a cabeça, agrediu Neeskens numa falta desclassificante, foi expulso e respondeu as provocações de centenas de torcedores mostrando três dedos em alusão ao tricampeonato do Brasil - que sucumbia diante da nova sensação do futebol.

Mas... uma velha história se repetiu.

Assim como o Brasil de 50 e a Hungria de 54, a Holanda capitulou na hora da decisão.

Até deu uma alegria fugaz na saída de bola. Dezessete toques envolvendo o time alemão e Cruyff foi derrubado por Schwarzenbeck na área. Pênalti, cobrado por Neeskens, abrindo o placar.

A Alemanha, como muitos outros países, tinha tarimba em Copas, jogadores rodadíssimos como Beckenbauer, Sepp Maier, Overath, Grabowski, Holzenbein e Gerd Müller - Der Bomber, para os seus fãs.

Artilheiro em 70 com dez gols, baixinho para a posição de atacante, porém troncudo, forte, atarracado, ele era um perigo e tanto para os holandeses. Sofreu o pênalti que Breitner cobrou com perfeição aos 25 minutos. E fez, num chute cruzado aos 43, o gol que virou o jogo e selou a sorte (ou melhor, o azar) dos holandeses naquela Copa.

Helmut Schön, o treinador alemão, não mexeu no time ao longo de 90 minutos e Michels, inutilmente, substituiu Rensenbrink e Rijsbergen, colocando Rene Van de Kerkhof e De Jong na esperança do empate que levaria o jogo à prorrogação.

Inútil, porém. A Alemanha repetia a façanha de vinte anos antes e derrotava, desta vez em casa, a seleção que jogou o futebol mais plástico, mais eficiente, mais objetivo, mais ofensivo, de todo aquele Mundial.

E que, com certeza, ficou na memória de todos os que gostam de futebol.

Envelhecida e sem Cruyff - que não jogou a Copa de 78 porque teria cobrado uma grana preta de direitos de imagem (algo inédito até então), embora a Federação tenha culpado a ditadura vigente pela ausência do craque, a Holanda ainda mostrou resquícios de sua força quatro anos depois na Argentina.


Chegou à decisão contra os donos da casa depois de uma campanha claudicante na primeira fase - vitória sobre o Irã com três gols de Rensenbrink, empate sem gols com o Peru e derrota para a Escócia - e de uma segunda fase impecável, goleando a Áustria, empatando com a Alemanha e vencendo a Itália, de virada, com dois petardos de Brandts e Haan do meio da rua.

Aquele time era treinado por Ernst Happel, austríaco, adepto mais da força do que da técnica. Mas havia talento e muitos bons jogadores naquela seleção que, por pouco, não calou o Monumental de Nuñez.

O jogo estava empatado em 1 x 1 (gols de Kempes para a Argentina aos 38 da primeira etapa e de Nanninga aos 37 do segundo tempo para os holandeses), quando Rensenbrink chutou uma bola na saída de Fillol aos 45 do segundo tempo e ela caprichosamente bateu na trave.

Os Deuses do Futebol não queriam ver a Laranja Mecânica campeã do mundo: na prorrogação, Kempes e Bertoni fulminaram Jongbloed e fizeram a festa dos argentinos numa das competições mais contestadas de todos os tempos.

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