Digam o que quiserem.
Que ele é mala, que falta aos shows (que nem Tim Maia fazia) ou que reclama de tudo.
Para mim, João Gilberto, o baiano que sintetiza a existência da Bossa Nova, é um dos maiores gênios da música popular brasileira.
Nascido em Juazeiro em 10 de julho de 1931, alimentou-se de música desde os 14 anos, ouvindo Tommy Dorsey e Duke Ellington, passando por Dorival Caymmi e Dalva de Oliveira. Veio para o Rio com 19 anos e por aqui se fixou, cantando num grupo chamado Garotos da Lua - de onde foi posto para fora por, adivinhem por que?
Indisciplina gerada por faltas e atrasos.
Genioso, obcecado ao extremo, conheceu Tom Jobim e com ele começou a formatar a estética de uma nova forma de expressar-se com o violão, fora das tendências conservadoras da época. Com seu violão unindo harmonias com uma percussão sincopada de samba, surgia a revolução da música nacional dos anos 50.
Ele tocou no disco Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, com músicas de Tom e Vinícius de Moraes. E naquele mesmo ano de 1958, o mesmo onde o Brasil seria campeão do mundo na Suécia, João lançou seu primeiro LP - Chega de Saudade.
Mais dois LPs depois, agora com novas parcerias (Carlinhos Lyra e Roberto Menescal) além de recriações de clássicos da música brasileira, que ganharam na sua voz interpretações marcantes e definitivas, João Gilberto já era realidade na MPB e no mercado internacional, onde a Bossa Nova fora incorporada ao cool-jazz e ícones como Charlie Byrd, Herbie Mann e Stan Getz faziam versões das canções que o público da época aqui já conhecia de cor.
Não foi surpresa então que em 62, na esteira desse sucesso, João fosse convidado para fazer o histórico álbum Getz / Gilberto, onde Astrud (a primeira esposa do baiano) despontou como cantora e 'The Girl From Ipanema' - a versão americana de 'Garota de Ipanema' - estourasse como um foguete fazendo desta a música mais regravada da história.
Os shows no Carnegie Hall e os quatro Grammys ganhos com o disco só comprovavam que a Bossa Nova era uma realidade.
Mas as coisas mudaram no Brasil. Surgiram a Jovem Guarda, o Movimento Tropicalista, cantores e cantoras poderosos como Wilson Simonal e Elis Regina. E João passou a fazer parte, ao menos naqueles anos, de um passado remoto. Sua música era um "objeto não identificado" nos anos 60 e ele, que já era arredio, ficou ainda mais recluso e reticente - entrevistas com ele eram raríssimas.
Apesar disso tudo, ele tinha muitos devotos no seio do Tropicalismo, especialmente Caetano Veloso, que naquela época demonstrou na canção 'Saudosismo' (gravada com os Mutantes) todo o seu apreço por João Gilberto. Sem deixar de dar aquela cutucadinha básica na Bossa.
Eu, você, nós dois
Já temos um passado, meu amor
Um violão guardado
Aquela flor e outras mumunhas mais
Eu, você
João girando na vitrola sem parar
E o mundo dissonante que nós dois
Tentamos inventar
A felicidade... a felicidade...
A felicidade... a felicidade...
Eu, você
Depois
Quarta-feira de cinzas no país
E as notas dissonantes se integraram
Ao som dos imbecis
Sim, você, nós dois
Já temos um passado meu amor
A bossa, a fossa, a nossa grande dor
Como dois quadradões
Lobo lobo bobo... lobo lobo bobo
Eu, você
João girando na vitrola sem parar
E eu fico comovido de lembrar
O tempo e o som
Ah! Como era bom
Mas chega de saudade, a realidade
É que aprendemos com João
Pra sempre ser desafinados
Desafinado ou não, João partiu para um auto-exílio nos Estados Unidos. Já casado com Miúcha, irmã de Chico Buarque e mãe de Bebel Gilberto, fez o disco auto-intitulado que só foi lançado em 1973, cinco anos depois de gravar 'Ela é Carioca' no México.
Foi a primeira guinada visível em seu repertório depois de tanto tempo. Fez o álbum The Best of Two Worlds em 1976 e no ano seguinte assinou aquele que é considerado o seu mais perfeito trabalho - Amoroso.
A partir daí, suas aparições no Brasil, onde mantém um apartamento no Rio de Janeiro, no prédio onde fica o Rio Design Center, no Leblon, ficaram cada vez mais raras. Nos anos 80, participou da série "Grandes Nomes" da TV Globo, cantando - acredite quem quiser - com Rita Lee, clássicos dos anos 40 como 'Juju e Balangandãs' e sucessos da Rainha do Rock como 'Mania de Você'.
Em 86, ele foi protagonista de um episódio onde felizmente tudo terminou bem.
Graças a uma gripe violenta, cancelou diversos shows previamente agendados na Europa. Em Veneza, um empresário quase partiu para a porrada ao saber que João não cantaria no dia previsto. O baiano viajou para Antibes, na França e depois partiria para o consagrado Montreux Jazz Festival, na Suíça. Melhor da gripe, fez um show fenomenal em Antibes, onde o italiano já o esperava pronto para o primeiro bofete.
Na primeira fila, porém, ao ouvir os clássicos de João, se emocionou, chorou e até foi ao camarim depois para abraçá-lo e confirmar que o esperava em Veneza depois de Montreux, onde fez um espetáculo fantástico - que se tornou um dos mais belos discos ao vivo já gravados no Festival.
E o polêmico, excêntrico e perfeccionista João de fato voltou à Itália e emocionou de novo o dono do bar de Veneza.
Muito tempo depois, com produção de Caetano Veloso, lançou João, Voz e Violão, recriando clássicos do passado e despertando reações de amor e ódio na crítica. O gênio difícil do baiano não bateu com o de Caetano, que também não é nenhuma maravilha e por pouco este não abandonou o comando do barco. Mas o álbum saiu e ganhou relativo sucesso, embora em alguns shows o público reagisse com vaias.
Mordaz, numa das apresentações realizadas em São Paulo no Teatro Municipal, soltou uma de suas pérolas: "Vaia de bêbado não vale... vaia de bêbado não vale..."
Este é João Gilberto. Polêmico, genioso, genial, temperamental, introspectivo, excêntrico, perfeccionista. E único.
2 comentários:
Concordo com teu comentário. Admiro demais João Gilberto. Se ainda não viu o filme Vinícius, deveria ver. Tem ótimas passagens dele no filme. Beijoss
Muito bom seu post, Rodrigo. Parabéns pelo estilo tão seu.
Bjs
Postar um comentário