domingo, 2 de abril de 2006

O mocotó do Tornado

Comprei antes do fim de semana o livro A Era dos Festivais - Uma parábola, de Zuza Homem de Mello.

Trata-se de um completo e competente registro de como a história da Música Popular Brasileira renovou-se e recriou-se como nunca mais ocorreu em sua existência.

Nestes eventos, nasceram craques como Chico Buarque, Milton Nascimento e Paulinho da Viola. E despontaram ídolos como Rita Lee (ainda n'Os Mutantes) e Raul Seixas.

Os Festivais também tiveram muita, muita polêmica.

Houve o violão quebrado de Sérgio Ricardo em 1967 e o hippie urrador de "É proibido proibir", cujo nome finalmente descobri graças ao livro - era Johnny Dandurand, que compôs uma música com os Mutantes naquele mesmo ano de 1968.

Mas em 1970 a coisa pegou fogo.

Em pleno governo Médici, a porrada comendo solta nos porões da ditadura, dois personagens da minoria foram as maiores atrações da V edição do Festival Internacional da Canção (FIC): Tony Tornado (abaixo em foto recente) e Erlon Chaves.




O primeiro era dublador de Chubby Checker em programas jovens de rádio (acredite se quiser...) antes de ir para os Estados Unidos trabalhando clandestinamente como lavador de carros e voltar com uma vasta cabeleira black power, e cheio de gírias do Harlem, o bairro barra-pesada de Nova York.

Do alto de seu 1,94 metro, Antônio Viana Gomes virou Tony, ao qual acrescentou-se o sobrenome artístico Tornado por sugestão do produtor musical Mariozinho Rocha. E por sugestão de Orlandivo, Tibério Gaspar e Antônio Adolfo foram vê-lo num inferninho de Copacabana, onde Tony se apresentava.

Em busca de um intérprete para "BR-3" - uma canção cuja levada remetia (pelo menos em sua primeira parte) ao sucesso "Teletema" da novela Véu de Noiva, Adolfo e Tibério procuraram Wilson Simonal, velho amigo da dupla, que prontamente recusou o convite pois a balada não se encaixava no som do Simona, já conhecido como "Pilantragem".

Tim Maia também foi cotado, mas a Philips o guardava para o bombástico lançamento de "Primavera", preferindo não expor seu novo artista no festival. E em Tony Tornado, Tibério Gaspar encontrou o vocalista que precisava.

Trajando calça e camisa cáqui desabotoada, com o peito enorme pintado pelo maquiador global Erick Rzepecki, botas até a canela e a cabeleira que o deixava ainda mais alto, Tony arrebentou no FIC de 1970. Com o Trio Ternura - Jussara, Jurema e Robson - nos backing vocals, ele sentiu-se à vontade para dançar feito um James-Brown, fez improvisos vocais em inglês, levou a platéia do Maracanãzinho ao delírio.

A gente corre na BR-3

A gente morre na BR-3

Há um foguete

Rasgando o céu, cruzando o espaço

E um Jesus Cristo feito em aço

Crucificado outra vez

E a gente corre na BR-3

E a gente morre na BR-3

Há um sonho

Viagem multicolorida

Às vezes ponto de partida

E às vezes porto de um talvez

E a gente corre na BR-3

E a gente morre na BR-3

Há um crime

No longo asfalto dessa estrada

E uma notícia fabricada

Pro novo herói de cada mês



Como efeito, venceu a parte nacional do Festival.

Mas os militares estavam preocupadíssimos. Temiam que Tony Tornado se tornasse um novo líder contra a repressão. A paranóia remetia aos Panteras Negras, que nos anos 60 foram um ícone dentro da luta pelos direitos civis nos EUA.

Patrulhado incessantemente, o cantor participou de um triste episódio em Guarapari, litoral do Espírito Santo, enquanto se apresentava num show: caiu em cima de uma moça e a feriu na coluna. As más-línguas disseram que ele estava doidão.

Em 1972, cerrou o punho como um Pantera Negra numa apresentação de Elis Regina e foi preso sob a alegação de 'subversão'.

Seu namoro com a pernambucana Arlete Salles, então uma das mulheres mais bonitas e cobiçadas do país, também foi alvo de inúmeras críticas.

O Brasil vivia sob a sombra do racismo pesado.

E outra vítima de toda a sorte de perseguições foi o maestro Erlon Chaves.

Trabalhando no meio artístico desde o fim dos anos 40, ele logo se tornou arranjador e maestro da TV Tupi no Rio e em São Paulo. E depois, figura fácil e requisitada para ajudar na produção de discos dos melhores artistas do país. Naquele 1970, com 36 anos de idade, Erlon deixou o fundo do palco para se tornar uma atração do FIC.

Com o suporte da Banda Veneno e um coral gospel, acompanhados de farta percussão de samba, Erlon e seus comandados botaram para ferver com "Eu Quero Mocotó" - uma composição de Jorge Ben com frases e palavras de duplo sentido, que imediatamente caiu no gosto popular.

Com roupas berrantes e mais de 40 pessoas sob seu comando, Erlon imediatamente tornou-se um astro do Festival. E quanto mais pedia mocotó, mais o público se entusiasmava e os jurados também. Rita Lee foi à loucura, mas a música não passou para a fase final com as canções internacionais.

Entretanto, como presidente do júri internacional e sob a beligerância do produtor Augusto Marzagão, Erlon pôde reapresentar-se com a Banda Veneno num dos shows extras programados para a grande final - onde "BR-3" terminou em terceiro.

Sentindo-se o rei da cocada, Erlon dispensou os eunucos que o abanavam com leques enormes na apresentação da eliminatória e trouxe duas loiras esculturais, trajando biquinis mínimos (para os padrões de 1970, é claro) que se esfregaram lubricamente nele, rebolando e pedindo mocotó.

A platéia, embasbacada, ensaiou uma vaia. Mas quando a Banda Veneno entrou no palco, o anticlímax se dissipou e "Eu Quero Mocotó" foi cantada pela maioria dos 20 mil presentes ao ginásio Maracanãzinho.

Isso era pinto perto do que aguardava Erlon pelos dias seguintes. Acusado de obsceno, libidinoso, cafajeste, desrespeitoso e outros epítetos pouco elogiosos, o maestro foi apertado pela Censura Federal. Proibido de exercer suas atividades profissionais por 30 dias, viu sua carreira de cantor ir para o espaço.

O ressentimento pelo sucesso de Erlon atingia níveis inaceitáveis, principalmente porque sua namorada era ninguém menos que Vera Fischer, a Miss Santa Catarina de 1969, uma loira do barulho. E muitos apostaram que se ele fosse branco, nenhuma nesga desse escândalo que se tornou sua apresentação do FIC teria acontecido.

Como conseqüência, ele acabrunhou-se e sua carreira entrou em declínio. Em 1974, aos 40 anos de idade, morreu de infarto em plena rua Senador Vergueiro, no Rio de Janeiro.

Perseguidos, oprimidos, negros e entertainers: estes foram Tony Tornado e Erlon Chaves, figuras emblemáticas da história dos Festivais de Música neste país.

3 comentários:

Anônimo disse...

Realmente Tem uma coisa que me deixa triste, ninguem valoriza muito a cultura popular, é uma pena, se a gente valorizar a nossa cultura, o nosso pais seria muito melhor

Anônimo disse...

Ah Rodrigo, enfim um post que fico muito a vontade de comentar. Eu estava lá!!! Vi, cantei e vibrei com o Toni...e acabei fazendo aqui, junto com as tuas palavras, uma viagem no tempo.
Tempo difícil, de ditadura que nos calava, e que tinha no festival mais do que a simples diversão. Era ali que os jovens, podiam gritar, expressar a rebeldia tolida, mostrar que a música podia ser uma forma de protesto...Os festivais foram acontecimentos que tiveram um sentido político na sua mais pura forma de expressão.
Adorei o post!!!!!

Luly disse...

Por isso eu gosto de ler seu blog: acabei 'roubando' um pouco da sua cultura para enriquecer meu próprio texto, espero que não se importe...rs
bjs.