quinta-feira, 30 de novembro de 2006

E o Samba sambou...

Nunca o enredo da São Clemente para o Carnaval de 1990 foi tão profético.

A irônica letra composta por Helinho 107, Mais Velho, Nino e Chocolate foi uma tremenda bofetada no ramerrão da festa mais popular do planeta. E sem meias-palavras, detonou um processo que já era notório naquela época - e vem piorando a cada dia.

Digo isto porque ainda estamos chegando em dezembro e em golfadas começam as matérias lugar-comum sobre o evento do próximo ano. E quanto mais vejo, mais me pergunto: onde estão os personagens que fazem realmente o Carnaval?

De se lamentar que não existam mais compositores capazes de fazer métrica, rima e poesia em forma de samba. Saudades de Mano Décio da Viola, Cartola, Silas de Oliveira, Carlos Cachaça, Manacéia, Geraldo Babão, Didi e até de Martinho da Vila, que há anos não vence uma disputa na sua Unidos de Vila Isabel.

Lamentavelmente o que vemos hoje é a propagação do chamado "samba de condomínio". Oito ou nove, até, juntam-se para formar a 'autoria' da letra. E isso quando a escola manda unir a primeira parte de um com a segunda do outro. O Salgueiro que o diga - em 1988, com o enredo "Em Busca do Ouro", havia catorze (isso mesmo, catorze!) autores do samba. Haja braço e mão para colocar uma letra num papel.

Só para fazer uma comparação cruel com as letras de hoje com o que tínhamos outrora, basta dizer que pelo menos cinco dos maiores sambas de todos os tempos vêm antes dos anos 80. Um deles é o inesquecível "Os Sertões", da Em Cima da Hora (1976). Um primor de letra e melodia.

Marcados pela própria natureza
O Nordeste do meu Brasil
Oh! solitário sertão
De sofrimento e solidão
A terra é seca
Mal se pode cultivar
Morrem as plantas e foge o ar
A vida é triste nesse lugar


Sertanejo é forte
Supera miséria sem fim
Sertanejo homem forte
Dizia o poeta assim

Foi no século passado
No interior da Bahia
Um homem revoltado com a sorte
Do mundo em que vivia
Ocultou-se no sertão
Espalhando a rebeldia
Se revoltando contra a lei
Que a sociedade oferecia

Os jagunços lutaram
Até o final
Defendendo Canudos
Naquela guerra fatal


Não é preciso ir mais longe. Outra obra-prima é "Sonho de um sonho", onde Martinho da Vila deita e rola com o uso do chamado pleonasmo. E faz um dos mais belos sambas de sua extensa obra, levando a Vila ao vice-campeonato em 1980.

Sonhei
Que estava sonhando um sonho sonhado
O sonho de um sonho
Magnetizado
As mentes abertas
Sem bicos calados
Juventude alerta
Os seres alados


Sonho meu
Eu sonhava que sonhava

Sonhei
Que eu era o rei que reinava como um ser comum
Era um por milhares, milhares por um
Como livres raios riscando os espaços
Transando o universo
Limpando os mormaços


Ai de mim
Ai de mim que mal sonhava

Na limpidez do espelho só vi coisas limpas
Como uma lua redonda brilhando nas grimpas
Um sorriso sem fúria, entre o réu e o juiz
A clemência e ternura por amor da clausura
A prisão sem tortura, inocência feliz

Ai meu Deus
Falso sonho que eu sonhava
Ai de mim
Eu sonhei que não sonhava
Mas sonhei


E agora, deparem-se com a letra do samba de 2005 da Acadêmicos do Pro... ops! Grande Rio, com inúmeras referências aos patrocinadores que a agremiação conseguiu para custear o desfile daquele ano.

Oh! Mãe terra generosa, solo fértil abençoado
De onde brotam riquezas nosso alimento sagrado
Imenso Brasil da mistura, culinária que fascina
Moça, que tempero saboroso
Preparado bem no clima
Se alimentar pro corpo é fundamental
Lá no ninho tem sabor especial
Se há comemoração vamos confraternizar
Comer se torna um ritual
Prepare a mesa nesse carnaval

Beleza a me seduzir
Aroma pra me revelar
Alimentando o meu prazer
Dá gosto no meu paladar

A força que tem entre a terra e o céu vem da fé
Se a vida imita a arte, diversão faz parte
Enriquece o meu saber
Eu só quero ser feliz
Dividir o pão com meu irmão
Por que será, que uns têm muito e outros não?
Abaixo a discriminação
O povo pede paz e união
A mensagem de paz Grande Rio nos traz

A verdade da vida, o prazer de viver
Alimentar o corpo e a alma faz bem, meu bem
querer
!

É óbvio que cada vez mais colocar um Carnaval na avenida custa muito caro - mais de US$ 1 milhão.

Mas não exageremos!

Slogan da Nestlé em letra de samba já é além do limite.

É o business levado às últimas conseqüências.

Um jogo de cartas marcadas que irrita e enoja.

A compra de resultados é constante e dizem que graças a ela a Imperatriz foi bicampeã em 94/95 e tri de 1999 a 2001. Muitos atribuem a isto pelo fato de, na época, o presidente da LIESA ser o Luizinho Drummond.

Pois bem: em 1996, a Imperatriz fez um sensacional desfile, tinha um dos melhores sambas de sua safra e tudo para ser tricampeã. E por que cargas d'água a Mocidade ganhou?

Vai entender...

A situação de manipulação de resultados no Grupo A, que classifica uma escola para o desfile principal, é ainda pior. Que o diga o que vem acontecendo com a União da Ilha, coitada... Outro fato foi o título da Tradição no ano de 1997. A bateria desfilou sem fantasia e mesmo assim a agremiação de Campinho terminou em primeiro. Um escândalo!

E por falar nisso, um passarinho me contou que para 2007 já está tudo resolvido. Vão dar o título para a Viradouro porque a LIESA teria um débito com o carnavalesco Paulo Barros, que agora está na agremiação sediada no Barreto, em Niterói.

A entidade sabe que ele foi a mola-mestra de dois vice-campeonatos da Unidos da Tijuca e autor de três carnavais consecutivamente espetaculares. E que só não foi o campeão com sua antiga Escola porque o presidente da Unidos da Tijuca, o português Fernando Horta, tem uma pendenga notória com os caciques da LIESA - Capitão Guimarães, Anísio Abrahão David e Luizinho Drummond - talvez por conta do rebaixamento da agremiação em 1998.

Outra situação irritante é o andamento imposto pelas Escolas para cumprir o tempo máximo permitido - uma babaquice que os tempos modernos trouxeram para o Carnaval e que tirou não só a alegria do verdadeiro sambista como 'marcheou' os sambas, deixando-os de certo modo bem parecidos.

O grande Fernando Pamplona disse certa vez que em breve o evento vai virar desfile militar. E acho que isso está muito próximo de acontecer.

E tem mais: que Carnaval capenga é esse onde desfilam 13 escolas em vez de um número par? A LIESA desconversa e diz que não tem dedo da televisão. Mas, vamos e venhamos: vocês acham que a Globo vai abrir mão do Fantástico no domingo e da novela das nove na segunda?

Nem a pau, Juvenal.

E é por isso que o Samba, coitado, sambou...

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