segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

1967 - o ano da psicodelia

Se 1968 é o ano que não terminou, como diz o título de um livro de Zuenir Ventura, o ano anterior - e lá se vão quatro décadas a contar deste primeiro de janeiro de 2007 - marcou um estilo de ser, estar e viver que marcou época na cultura, principalmente na música.

A psicodelia.

Um exemplo disto é o disco de um dos maiores "power-trios" da história do rock: Disraeli Gears, do Cream.

O título do álbum veio por sugestão de um roadie que já trabalhava com Ginger Baker no tempo da Graham Bond Organisation, uma banda de jazz da qual ele e Jack Bruce fizeram parte lá por 1964. Durante uma viagem de carro, rolava um papo entre Baker e Eric Clapton sobre bicicletas e o dito cujo soltou: "Estão falando das bicicletas de corrida com marchas disraeli?" Pronto... imediatamente o nome foi escolhido.

O Cream lançara um ano antes o álbum de estréia, 'Fresh Cream', flertando muito mais com as raízes do blues e isso provavelmente se deve à influência de Clapton, que fora guitarrista dos Yardbirds e dos Bluesbreakers de John Mayall. Ele tocava tanto e tão bem para um músico branco, que um belo dia impressionou o fundador da Atlantic Records, Ahmet Ertegun, recentemente falecido.

"Achei que fosse um músico do grupo de Wilson Pickett, mas ele estava tomando um trago no bar. Quando me virei, deparei-me com um menino tocando um blues maravilhoso, de olhos fechados e um rosto perfeito."

Para o disco de 1967, Ahmet Ertegun cuidou diretamente para conseguir um trabalho ainda melhor que o da estréia. Chamou Tom Dowd para cuidar da engenharia de som e o músico de estúdio Felix Pappalardi, baixista de formação, para produzir o LP.



Jack Bruce tinha como parceiro Pete Brown, que concebia a maioria das letras em dupla com o baixista. Clapton normalmente não tinha quem pusesse versos em suas melodias - e a salvação da lavoura veio com um... artista plástico.

Martin Sharp foi indicado por meio de Charlotte Martin, uma linda francesa que era a namorada do guitarrista do Cream na época. Ele não só escreveu uma letra, das mais belas do disco, como também compôs a capa do LP, fazendo uma colagem com fotos de Robert Whitaker, abusando de cores fluorescentes, asas de Albrecht Dürer e inspirações provindas de outros artistas.


Sharp viajara por algumas ilhas como Ibiza e Formentera, na Espanha, e graças à esta viagem escreveu de estalo "Tales Of Brave Ulysses" - para a qual Clapton já tinha uma melodia. E incrivelmente letra e melodia se fundiram de forma perfeita. Foi também a primeira canção do Cream onde Clapton usou o pedal wah-wah de distorção.

O disco abre com "Strange Brew" e sua característica levada de guitarra, herdada de "Lawdy Mama", uma faixa que fora lançada em compacto simples na época do 'Fresh Cream'. A música não agradava Clapton, que a achava pop demais. Mesmo assim, ele botou voz e o grupo invariavelmente se apresentava no lendário programa Beat Club cantando "Strange Brew".

Em seguida vem "Sunshine Of Your Love", um grande momento de inspiração de Pete Brown, que fez a letra, de Jack Bruce, que tinha a harmonia de baixo na cabeça e de Clapton, que construiu a levada que amarrou as duas partes da música. Nascia aí aquela que é provavelmente a maior música do grupo.

"Sunshine..." foi tão impactante que o Experience de Jimi Hendrix tocava a música em diversos shows, conforme registrado no BBC Sessions onde o lendário guitarrista pára de tocar "Hey Joe" e faz uma homenagem ao Cream. E detalhe: a música fora um pedido da apresentadora Lulu - aquela mesma que canta o tema de 'Ao Mestre Com Carinho', o filme em que Sidney Poitier desponta para o estrelato. Afora que os shows do power-trio invariavelmente encerravam com a canção e o palco era invadido pelos fãs que queriam abraçar Jack Bruce, Ginger Baker e Eric Clapton.

Terceira faixa, "World Of Pain" é uma contribuição de Felix Pappalardi e Gail Collins, que fizeram juntos letra e melodia. O baixista Jack Bruce confessa não gostar da letra, achando-a pesada demais. Mas a música é bastante interessante, como "Dance The Night Away" - claramente inspirada em grupos da época, como o Byrds e o Lovin' Spoonful, na levada da Gibson Les Paul de Eric Clapton na divisão da primeira para a segunda parte da canção.

Pete Brown, que na época estava se livrando do álcool e das drogas, fez a canção pensando nas noites dos cabarés, que exalavam exatamente estes dois itens, com um componente ainda mais ruidoso - o sexo.

O álbum fecha o 'lado A' com a subestimada "Blue Condition" e abre triunfalmente o 'lado B' com "Tales Of Brave Ulysses", já citada algumas linhas acima.

Em "Swlabr", mais uma canção de Jack Bruce e Pete Brown, de título esquistíssimo, a perfeita celebração do que eram os anos do Flower Power, de amor livre e paz. Afinal, o Cream tinha milhares de adeptos dos EUA - costa a costa - e um público muito cativo no oeste, em Los Angeles e São Francisco, que gostava muito das músicas do disco.

A melhor delas, sem sombra de dúvida, é "We're Going Wrong", composta e escrita por Jack Bruce depois de uma briga com a esposa. Não pela letra forte, pela pegada da melodia, mas especialmente pela inspiração dos três músicos na gravação.

Clapton produz uma rascante linha de guitarra, Bruce segura as pontas com seu baixo e Ginger Baker simplesmente mata a pau com suas intervenções de bateria. É ele quem carrega "We're Going Wrong" do começo ao fim.

"Não conheço outro baterista tão brilhante quanto Ginger", reconhece Jack Bruce, mesmo com todas as brigas que tiveram em mais de quatro décadas de convivência.

"Outside Woman Blues", composição de Arthur Reynolds que ganhou um arranjo de Eric Clapton, revela todo o fulgor do britânico, mostrando que ele era definitivamente do primeiro time, cantando e conduzindo um legítimo blues ao estilo das faixas do primeiro álbum.

E em tempos de protesto contra a Guerra do Vietnã, o Cream se aliou aos que não queriam ir para a Ásia, escrevendo e gravando uma canção de protesto. "Take It Back" virou um dos hinos dos que se recusavam a atender a convocação do Exército Americano, rasgando e queimando seus certificados, além de cerrar os punhos da mão direita, numa alusão aos Panteras Negras.

"Por um momento temi que fôssemos convocados para a Guerra, de tanto que íamos aos EUA para fazer turnês que duravam meses", confidenciou Bruce certa vez. Vale lembrar que os três são ingleses.

O bom astral ainda imperava no Cream e o disco é fechado com uma brincadeira chamada "Mother's Lament", sugestão de um amigo de Clapton e Ginger Baker, que assumem o vocal com Jack Bruce ao piano. A música foi gravada em um take apenas e foi o fecho perfeito para aquele que é celebrado até hoje como um marco da psicodelia, do blues rock e do hardcore - algo que ninguém de fato fazia na música até então.

Daí vieram The Who, Led Zeppelin e tantos outros grupos. E como costumo escrever, o resto é história.

Um comentário:

Anônimo disse...

O ano de 1967 marcou o lançamento de outro álbum histórico: The Piper at the Gates of Dawn - Pink Floyd. Este disco foi (ainda é) muito revolucionário, mas infelizmente não causou tanto impacto na época, pois foi lançado quase que no mesmo instante que Sgt. Peppers dos Beatles.