sábado, 4 de novembro de 2006

Gênio (mais um) incompreendido

A vida sempre nos traz histórias de vilões e mocinhos. Ladrões, corruptos e gente de bem. Gênios e charlatães. Falsos e verdadeiros.

Como há muito não se fala de gênios aqui, vou pagar tributo a um. Sim, pois este moço da Pompéia, bairro de São Paulo, foi - e ainda é - um artista genial.

Ele é Arnaldo Baptista, a cabeça pensante d'Os Mutantes.

Ocioso dizer que ele foi o líder natural do grupo até a sua repentina saída em julho de 1973. Letrista, baixista de mão cheia, carismático, sedutor e criativo (como o irmão Serginho e a cantora Rita Lee), Arnaldo era também a porção mutante mais geniosa, difícil e por muito tempo incompreensível.

Todos os que passaram pelo grupo na primeira fase - e isto inclui Liminha, o hoje respeitado produtor musical e também o baterista Dinho, irmão do comentarista da Globo Reginaldo Leme - mergulharam pesado nas experiências com drogas de todos os tipos: maconha, haxixe, LSD e mescalina. Não há registros que eles tenham experimentado cocaína, pelo menos no que consta no livro A Divina Comédia dos Mutantes, de Carlos Calado, recém-reeditado pela Editora 34.

Arnaldo, que já era um sujeito de reações intempestivas, piorou com o abuso de drogas e principalmente com o fim de sua relação amorosa com Rita Lee (com quem se casou em fins de 1971) e a saída dela dos Mutantes. Um belo dia, ele brigou com o próprio irmão e tomou o rumo de casa. Foi embora. Fim. Um ciclo se encerrava e por mais que Serginho mantivesse a "chama" com outras formações, o grupo jamais foi o mesmo.

Com a entrada de Liminha na banda, Arnaldo passara a se dedicar a um órgão Hammond e ao piano. Ele aprendera a tocar com a própria mãe, que tinha formação musical clássica e apoiou os filhos (em parte) para que fossem músicos profissionais.

E sentado diante das teclas, compôs sofregamente uma dezena de músicas, esperando que um dia elas viessem a ser gravadas. Estremecido com André Midani, o presidente da Philips, nem ousou apresentar o projeto a ele. Mas um bossa-novista de primeira hora e funcionário da companhia se antecipou ao lance.

Roberto Menescal (a quem Arnaldo conhecia da época da viagem a Cannes para o MIDEM de 1969) percebeu que ali havia um material muito bom para um disco. E mais: ficou comovido com a angústia e o abatimento de Arnaldo, que só faltou lhe implorar para entrar em estúdio. Com Midani, ele foi curto e grosso.

"Vou tentar fazer um disco com o Arnaldo Baptista."

E fez.

Dinho e Liminha foram chamados para gravar as bases de bateria e baixo (não havia guitarras). Rogério Duprat, o nosso George Martin brasileiro, escreveu os arranjos e montou as orquestrações. Arnaldo, com sublime competência e grande dose de sofrimento, acabou por fazer um dos discos mais enigmáticos do rock brasileiro em todos os tempos: Lóki?

O título fazia uso de uma gíria comum dos anos 70 para louco, pirado. E louco, ou não, Arnaldo foi brilhante da primeira à última faixa, num álbum confessional e (por que não dizer?) passional.

A primeira faixa é a irônica "Será que eu vou virar bolor?", onde Arnaldo canta com um tom muito mais natural de voz - como aliás em todas as faixas e deixando de lado os traços de Soul Music que punha na maioria de suas interpretações como cantor nos Mutantes.

Na letra, sobrou pra todo mundo. A comunidade da Cantareira onde ele e seus antigos parceiros curtiam um barato, o roqueiro Alice Cooper, a NASA e os discos voadores (que ele jurava ter visto) - ninguém foi poupado.

A seguir, vem a releitura de "Uma pessoa só", faixa do disco O A e o Z, que demorou 19 anos para ser lançado. A leitura da letra é, sem dúvida, sobre drogas. Mas qual delas ou quais delas... aí fica a questão.

Eu sou
Você é também
E todos juntos somos nós

Estou aqui reunido
Numa pessoa só
E todos juntos somos nós
Uma pessoa só

Você também está tocando
Você também está cantando

Estamos numa boa pescando pessoas no mar
Aqui
Numa pessoa só

Eu sou o começo sou o fim
Sou o "a" e o "z"
Todos juntos reunidos
Numa pessoa só

A dor de cotovelo por sua saída dos Mutantes e a perda de Rita Lee vão tomando conta do disco. "Não Estou Nem Aí" é a primeira do lote confessional, com uma letra bastante ambígua e repleta de indiretas, abrindo passagem para a hilária letra de "Vou Me Afundar na Lingerie", cujos backing vocals tiveram a participação de... Rita Lee.

Isto mesmo, a futura rainha do rock brasileiro também deu uma força a Arnaldo em seu primeiro disco solo (como ele fizera em 1970 no LP "Build Up" e em "Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida" - este creditado por muitos como um disco dos Mutantes).

Arnaldo esmerilha no piano em "Honky Tonky (Patrulha do Espaço)", única viagem instrumental do disco. E retoma a ironia em "Cê Tá Pensando Que Eu Sou Lóki?", com uma mensagem certeira em direção a Rita Lee e seu fracassado projeto com Lúcia Turnbull - As Cilibrinas do Éden.

Cê tá pensando que eu sou loki, bicho?
Sou malandro velho
Não tenho nada com isso

A gente andou
A gente queimou
Muita coisa por aí
Ficamos até mesmo todos juntos
Reunidos numa pessoa só

Cê tá pensando que eu sou loki, bicho?
Eu sou velho mas gosto de viajar por aí
Cilibrina pra cá
Cilibrina pra lá
Eu sou velho, mas gosto de viajar...

Cê tá pensando que eu sou loki, bicho?
Malandro velho
Não se mete no enguiço

Arnaldo deu bandeira em "Desculpe", linda balada em que ele entrega o sofrimento da perda dupla. No verso "não sou perfeito... nem mesmo você é", engata a primeira sílaba do nome de Rita Lee até transformar o som num grito primal. Ato falho?

"Navegar de Novo", só em piano e voz, tem outra belíssima melodia, costurada com trechos em inglês e português (incluindo um 'navigaire') numa das últimas estrofes, significando o 'bola para frente', o 'move on' dos americanos.

O disco se encerra com a balada "Te Amo Podes Crer", um verdadeiro tratado das dores de amores, e a minimalista e supertrabalhada "É Fácil", só com Arnaldo tocando violão.

Dilacerado, com o coração partido e dolorido, ele não permitiu sequer que Dinho e Liminha refizessem bases de seus instrumentos. Como querendo se livrar da dor, ele encerrou as gravações e o disco foi para as lojas.

Como era de se esperar, o trabalho foi incompreendido e Arnaldo ficou no vazio. Num espaço de 10 anos, ele fez outros quatro discos solo - "Elo Perdido" e "Faremos Uma Noitada Excelente", ambos com o grupo Patrulha do Espaço de John Flavin, em 1977 e 1978; "Singin' Alone", lançado pouco após de sua tentativa de suicídio ao se jogar da janela de uma clínica psiquiátrica em 82 e "Disco Voador", em 87.

O acidente que o deixou quatro meses em coma e com algumas seqüelas neurológicas trouxe o antigo mutante de volta à vida. E com uma nova companheira: Lucinha Barbosa. Residindo em Juiz de Fora, a 200 km do Rio de Janeiro, Arnaldo descobriu na pintura uma excelente terapia. Mas a música ainda estava no sangue e não foi com nenhuma surpresa que recentemente ele lançou o seu quinto álbum solo, "Let It Bed".

E mais do que isso. Melhor do que isso. Arnaldo reconcilou-se com Serginho Dias e junto com Dinho e Zélia Duncan, retomou a chama mutante, fazendo shows ovacionados nos exterior que renderão um DVD e a gravação de um CD ao vivo. No ano que vem, os Mutantes entram em estúdio 31 anos depois do último disco de inéditas - fazendo valer todo o sentido da velha canção...

Conquistar o espaço
Navigaire de novo
Descobrir as novas terras que existem por aí
I'm sure of that
Acima da velocidade da luz
Pois não existem tais barreiras
Já que a luz é relativa também

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