Não me canso de ver o DVD da minissérie Anos Dourados, produzida e exibida pela Globo há uns 20 anos, se não me engano.
Mais do que uma homenagem à uma época que marcou muita gente, principalmente o autor Gilberto Braga, a atração expôe a nu diversas vertentes de criação e comportamento daqueles tempos idos.
Tem coisas que são realmente um grande barato. Os carrões da época, então, nem se fala - todos americanos, importados. Modelo nacional? Só o Fusca.
As meninas só se vestiam com conjuntos de saia e blusa. Quatro ou cinco anáguas por baixo até aparecer a calcinha - que não era cavada, longe disso. Ser virgem era condição sine quan nom para se casar de véu e grinalda, e o sonho das mães (especialmente as tijucanas) era que suas filhas arrumassem "bons partidos": engenheiros, oficiais da marinha, médicos e quetais.
Os rapazes, óbvio, só pensavam em sexo. Vinte e quatro horas por dia. Se não conseguiam relações com as namoradas (algo raríssimo na época), partiam para dentro das empregadas ou então iam para os rendez-vous onde era de lei terminar a transa e fumar um cigarrinho com a prostituta.
Mas era uma época de gente elegante e feliz. Não havia violência, o clima era muito mais amistoso entre as pessoas, morria menos gente - também pudera, o Rio de Janeiro não tinha a superpopulação de hoje - os bailes no Fluminense eram o must, assim como estudar no Colégio Militar e no Instituto de Educação, que à época não admitiam turmas mistas.
Não havia também motéis e nem a pílula anticoncepcional. Filhos de pais separados eram olhados com uma fortíssima dose de preconceito. E ai dos homens que tivessem vida dupla, apesar de muitos terem condições de alugar uma garçonniére, o popular matadouro: corriam sérios riscos com chantagistas de toda a espécie, prontos para o achaque e para ganhar uma grana fácil em cima dos otários.
Boa parte desses ingredientes fazem parte da trama escrita por Gilberto Braga, que não chegou a viver aquela época mas, como ele mesmo revelou, teve a ajuda de muitos amigos comuns que passaram informações sobre o que existia e como era a sociedade naqueles tempos.
A minssérie é uma história de amor entre os personagens Marcos e Maria de Lourdes (Felipe Camargo e Malu Mader, ambos iniciando na TV - Malu era um pouco mais experiente pois seu primeiro papel fora em "Eu Prometo", no ano de 83, aos 16 anos). O primeiro, filho de pais separados. A mãe, uma caixa de boate em Copacabana. O pai, que tinha o curioso apelido de 'Morreu', era músico - e bêbado, jogador, mentiroso, enfim... um sujeito sem eira nem beira, como se diz por aí.
Lourdinha era criada por D. Celeste, uma mãe rígida, chata ao extremo com suas manias de querer controlar a filha e o irmão mais novo. E o pai era um pediatra conceituado, udenista convicto e que rezava na mesma cartilha da esposa.
Namorar um rapaz "transviado", filho de pais separados? Nem pensar! E a paixão que começou num inocente baile no Fluminense e que explodiu ao longo da minissérie teve muitos elementos que a tornaram cada vez maior e tortuosa, incluindo o rompimento do casal, um assassinato e outros eventos extras.
Para complementar, a mãe de Marcos, interpretada brilhantemente por Betty Faria, foi seduzida por um major da Aeronáutica (Dornelles, interpretado por José de Abreu) casado, pai de três filhos e cuja esposa era o xodó do Brigadeiro Campos (o falecido José Lewgoy). Um conservadorismo hipócrita que pouco a pouco foi posto por terra até a surpreendente revelação da vida dupla do pai de Lourdinha, amante da crooner da boate onde Glória, a mãe de Marcos, trabalhava.
O mais engraçado é que quem junta todos os pontos do crime onde até Marcos é indiciado como o possível assassino é justamente o malandro 'Morreu', que passa a minissérie inteira querendo fazer alguma coisa pelo filho - e sempre impedido pela manguaça, pela mentira e pela jogatina.
Apesar de todo o panorama de repressão sexual e social, Marcos e Lourdinha conseguem viver seu amor, enfim. E ao final da minssérie, em texto narrado pelo grande Paulo César Pereio, são o único casal entre todos os jovens da trama, que viviam em harmonia e felicidade.
Coisas de uma época de inocência, onde o chique não era a Barra da Tijuca, com seu kitsch-brega que enoja. Chique era Copacabana, com seus restaurantes, boates e intensa vida noturna, que felizmente se estendeu ao longo dos anos 60, com o surgimento do lendário Beco das Garrafas, reduto da Bossa Nova.
A trilha sonora da minissérie também é um assombro, reunindo pérolas cantadas por Edith Piaf, a "Divina" Elizeth Cardoso, Maysa, Dalva de Oliveira, Billy Eckstyne (que cantava o tema de amor de Marcos e Lourdinha), Tito Madi, Cyl Farney, Nat King Cole, The Platters e a sublime canção-título 'Anos Dourados', tocada ao piano pelo maestro soberano Tom Jobim.
Anos depois, essa mesma música ganharia letra de um dos maiores admiradores de Antônio Brasileiro: Chico Buarque de Hollanda.
4 comentários:
Que delícia ler isso, Rodrigo!
Deu pra matar um pouquinho a saudade da minissérie... Parabéns! Adorei o texto! Beijinho...
Adicionando, Mattar: havia para homens quatro carreiras "sérias": médico, engenheiro, advogado ou militar. Aceitava-se, com alguma restrição, ser funcionário do Banco do Brasil. Homem bem sucedido tinha sua garçonniére para encontros com a amante, fazia a barba com navalha de aço sueco e nada de creminhos ou perfumes, no máximo Acqua Velva, após barba. Ternos de pitex ou tropical inglês, uma vez que linho S-120 já era demodé.Óculos ray-ban e ainda se via aqui ou ali chapéus panamá.
Moçoilas de conjuntinho ban-lon e colarzinho falso de pérolas com uma só volta...
Agora, Billy Eckstine, só aqui mesmo, um dos meus cantores favoritos de jazz: I Apologize, Rio, e outras e outras...
Parabéns, Mattar, fui às lágrimas..
Queridão!
Que texto delicioso...
Pra ler e relembrar...
Tá uma beleza tudo isso, e vc foi impecável tb falando da trilha sonora...
iarinha
Gostos dos textos sobre esporte escritos com muita propriedade e conhecimento por você. Mas simplesmente adoroooo quando escreve sobre outros assuntos. Mas uma vez fui levada a sonhar, lembrar e analisar contigo...Muito bom Rodrigo. Beijossssss
Inez
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