Gosto de carnaval. Muito. A culpa, claro, é paterna. Nos anos 70, todo início de ano, todo fim de semana, lá vinham os discos com as feéricas capas da Top Tape ocupar a vitrola. Claro que eu, pequeno, não sabia patavina das letras, mas não resistia a chamar minha mãe, portelense roxa, de "nega fulô", quando ouvia 'Memórias poéticas de Jorge de Lima', samba da Estação Primeira de Mangueira do ano de 1975. E olha que de "nega fulô", minha mãe não tem nada.
O tempo passou, os discos de samba-enredo foram embora quando meu pai saiu de casa, mas a empolgação pelo carnaval, os sambas e os desfiles não feneceu. Pelo contrário, só cresceu. Com o passar dos anos, me interessei mais e mais pelo carnaval e a história dos desfiles, a ponto de passar tardes inteiras na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro lendo apaixonadamente a cobertura dos carnavais mais antigos, folheando edições de O Globo caindo aos pedaços.
A partir de 1981, com o coração conquistado pela Imperatriz Leopoldinense de forma definitiva, tornei-me um torcedor alucinado da agremiação de Ramos, bairro onde passei quase três décadas da minha vida. Essa paixão nunca me impediu, contudo, de elogiar a performance de outras escolas na avenida nem como deixar de admirar grandes sambas que tomaram conta da Marquês de Sapucaí.
Vejo que 2012 está marcado por um ano com sambas muito acima da média do que vínhamos ouvindo neste começo de século XXI. Se por vezes uma obra se salvava em meio à mediocridade e, por vezes, nenhuma era digna de registro, para o carnaval do ano que vem temos uma autêntica obra-prima, um samba que tinha tudo para sê-lo (mas não foi) e outros dois ou três muito bons. Infelizmente, não nos livramos dos chamados "bois com abóbora" nesta safra.
Proponho aqui minha humilde avaliação, ressaltando, mais uma vez: não sou especialista, não sou um crítico. Apenas um admirador desta festa que, por uma semana, iguala pobres e ricos numa só paixão.
Beija-Flor de Nilópolis - Vou entrar de sola numa questão polêmica acerca do samba da Beija-Flor. A junção proposta entre as duas obras finalistas "matou" uma possível obra-prima do carnaval de 2012. No meu entender, o samba da parceria de Samir Trindade, com seu excepcional refrão "Meu São Luís do Maranhão... poema encantado de amor... onde canta o sabiá... hoje canta a Beija-Flor" era de letra e melodia superior à composição de J. Velloso e parceiros, da qual aproveitou-se a segunda parte e o refrão do meio. Não é um samba ruim, muito longe disso. Mas a decisão da junção fez a Beija-Flor dar em si mesma um "tiro no pé". Perderam a chance de figurar como uma das melhores obras do carnaval por conta disso. Nota 9,6
Unidos da Tijuca - A agremiação do Borel também não foi feliz na escolha do seu samba-enredo para 2012. Tem alusões muito bem sacadas a Luiz Gonzaga, o "Rei do Baião" homenageado pela escola vice-campeã do ano passado, mas o samba não chega a empolgar. A melodia é apenas correta. Bruno Ribas gravou o samba muito bem, só que na gravação, o tom da voz do intérprete ficou mais alto do que deveria - o que pode dificultar o canto dos componentes na hora do desfile. Passando ao largo da comparação com o espetacular samba "Lua Viajante", enredo da Unidos de Lucas de 1982, esta homenagem a Gonzagão ficou devendo um pouquinho. Nota 9,5
Estação Primeira de Mangueira - A homenagem ao Cacique de Ramos é mais uma sacada inteligente de Ivo Meirelles após o desfile deste ano, com um enredo alusivo ao baluarte da verde-e-rosa Nelson Cavaquinho. Mas alguma coisa ficou estranha na gravação do samba de 2012: justamente a primeira 'passada', aquela em que o ouvinte tem que ser cativado pela voz do intérprete, é uma reunião de 'bambas' que, se soou inovadora pela proposta, por outro lado tornou-a estranha pelo desnível de vozes como as de Beth Carvalho e Jorge Aragão, por exemplo. No mais, o samba é bom, com uma segunda parte irresistível, porém com dois pequenos problemas: citações desnecessárias à própria Mangueira (uma vez que o homenageado é o Cacique de Ramos) e o refrão, destoando do resto da obra pela pobreza. Nota 9,5
Unidos de Vila Isabel - Vira e mexe a azul e branco da terra de Noel Rosa nos brinda com grandes sambas. Este de 2012 não é exceção. A escolha de mais um enredo "africano" nos remete a Kizomba e outros tantos desfiles carregados de emoção que a Vila Isabel já nos proporcionou no carnaval carioca. E mais uma vez, a escola leva para a avenida um samba de André Diniz, o maior vencedor das disputas de samba-enredo do Rio de Janeiro. Uma obra belíssima, com dois refrões sensacionais - "Reina Ginga ê matamba vem ver a lua de Luanda nos guiar... Reina Ginga ê matamba negra de Zambi, sua terra é seu altar" e "Semba de lá, que eu sambo de cá... Já clareou o dia de paz... Vai ressoar o canto livre... Nos meus tambores, o sonho vive" - e uma linha melódica perfeita. Tinga cantou o samba à perfeição na gravação do disco. O problema é que, na avenida, o intérprete costuma apelar para os gritos, o que pode comprometer a escola no seu desfile. Nota 9,9
Acadêmicos do Salgueiro - Outro samba que foi praticamente unânime na final da agremiação vermelho e branco do Andaraí, o "Cordel Branco e Encarnado" se encaixa na proposta de enredo de Renato Lage, com um refrão muito bom, para cima, um dos melhores do carnaval: "Salgueiro é amor que mora no peito... Com todo respeito, o rei da folia... Eu sou o cordel branco e encarnado... "Danado" pra versar na Academia". Mas a impressão que fica no ar é que este mesmo samba não levou a fundo o lema da escola. "Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente". Num ano de grandes sambas, o do Salgueiro não pode ser comparado aos melhores, justamente porque faltou o 'diferente' que poderia virar as coisas a seu favor. No meu gosto, o samba que Wantuir defendia nas eliminatórias era melhor. Mas a obra de Marcelo Motta e parceiros caiu no gosto dos componentes. E para o Salgueiro é isso que importa. Nota 9,6
Imperatriz Leopoldinense - A "Rainha de Ramos" teve neste ano a disputa mais acirrada para a escolha do seu samba - muito mais do que em qualquer outra das 12 coirmãs, mostrando a excelência de sua Ala de Compositores, hoje provavelmente a melhor do carnaval do Rio de Janeiro. De princípio, simpatizei mais com os sambas das parcerias de Me Leva e cia. (vencedores das disputas para 2010 e 2011) e de Josimar e cia. (autores dos sambas dos carnavais de 2008 e 2009), por serem mais descritivos e mais condizentes com a homenagem a Jorge Amado em seu centenário. Mas, correndo por fora, ganhou corpo a obra de Jefferson Lima e parceiros, que de maneira até certo ponto surpreendente, venceu a disputa. É um samba criativo, de melodia eminentemente afro e de versos inspirados como os da segunda parte: "O vento soprou... As letras em liberdade... Joga a rede, pescador!... O povo tem sede de felicidade... A brisa a embalar... Histórias que falam de amor... Memórias sob o lume do luar... O doce perfume da flor", mas que peca pelos refrões, especialmente o chamado 'refrão de cabeça'. Não compromete, mas está abaixo por exemplo, de "Brasil de Todos os Deuses", esta sim uma obra-prima da Imperatriz neste século. Nota 9,8
Mocidade Independente de Padre Miguel - Não é implicância com a escola da Vila Vintém, mas honestamente não consegui ser atraído pelo samba que alude a Cândido Portinari, outro artista já homenageado em outras ocasiões nos desfiles das escolas de samba. Se ano passado a Imperatriz abusou do direito de pôr frases com a terminação "ar" - foram 25! - a parceria de Diego Nicolau, Gabriel Teixeira e Gustavo Soares apelou para um quarteto de "al" - real, mural, ideal e carnaval - no fim da segunda parte do samba, que tem uma linha melódica que também não é das melhores do ano. É uma obra acima da média do que a agremiação mostrou nos últimos anos, mas longe de ser excepcional. Nota 9,4
Unidos do Porto da Pedra - Não há como dizer que o samba da escola de São Gonçalo é o grande "boi com abóbora" de 2012. Também pudera: o enredo não ajuda na composição de um bom samba e a obra de Vadinho e parceiros cai na vala comum dos sambas que rapidamente serão esquecidos pelos bambas. Salvou-se a ótima performance de Wander Pires, que economizou nas firulas e mostrou que, quando quer, pode ser um excepcional cantor de samba-enredo. A bateria comandada por mestre Thiago Diogo também foi um ponto positivo na gravação do pior samba do ano. Nota 9,1
Unidos de São Clemente - Impossível não gostar do samba da agremiação de Botafogo, a única da Zona Sul do Rio no Grupo Especial - embora sua quadra seja na Cidade Nova. O refrão, com seu "Tem bububu no bobobó" gruda no ouvido que nem chiclete e é o mais "alegre", "pra cima" de todo carnaval, marcando, quem sabe, a volta da irreverência da São Clemente perdida ao longo dos anos e que, grosso modo, remete também aos bons tempos da Caprichosos de Pilares. Embora o samba não tenha outros momentos de grande inspiração e trechos como "Puxa, aqui Paris é avenida" beirem a grosseria, a obra passa sem grandes problemas. A destacar a interpretação do jovem Igor Sorriso, uma das melhores de todo o disco. Nota 9,5
Acadêmicos do Grande Rio - Tanto falatório para uma grande decepção. É assim que considero o samba da agremiação tricolor da Baixada Fluminense, dado o que se aguardava do enredo de 2012, cujo mote é a superação. Nem de longe o samba é capaz de lembrar do que aconteceu à Grande Rio ano passado e aludir a outras histórias parecidas ou específicas do tema. Muito estranha, fora de contexto, é a citação ao Festival de Parintins, mesmo que de forma indireta, o que torna o samba ainda mais incompreensível para quem, como eu, esperava uma obra emocionante sem ser piegas. E isto, Edispuma e seus parceiros não conseguiram fazer. Talvez seja o pior samba da Grande Rio desde sua última volta ao Grupo Especial em 1994. Nota 9,3
Portela - Um samba com a cara da Portela. Comovente. Lindo. Extraordinariamente belo. Wanderley Monteiro, Luiz Carlos Máximo, Toninho Nascimento e Naldo estão de parabéns. Atingiram a altura da obra-prima num samba que merece ser o grande hit do carnaval de 2012. Sem deixar de olhar para o futuro, os compositores flertam com o passado, numa junção absolutamente feliz de tempo e espaço, trazendo para o nosso deleite um samba de três partes, com refrões emocionantes e que já fazem parte do panteão de trechos inesquecíveis do carnaval carioca. Madureira vai subir o Pelô! Nota 10
União da Ilha do Governador - A safra de sambas da União da Ilha para 2012 foi considerada pelos 'bambas' muito abaixo da média do que a escola poderia proporcionar. De fato, com um tema bastante interessante, aludindo aos Jogos Olímpicos de Londres puxando para a competição que será disputada no Rio em 2016 e ao fato de que a Grã-Bretanha é uma ilha feito a Ilha do Governador, os compositores desta vez não foram tão inspirados. A junção das obras das parcerias de Marquinho do Banjo e Aloísio Vilar, melodicamente, não foi ruim, mas o conjunto ficou confuso. Uma lástima para uma escola que angaria a simpatia de muitos dos que gostam de carnaval. Destaco o refrão de cabeça, que assim como o da São Clemente, gruda nos ouvidos feito chiclete. E Ito Melodia, mais uma vez foi muito bem na interpretação de um samba insulano. Nota 9,3
Renascer de Jacarepaguá - A caçula do Grupo Especial estreia em 2012 com um enredo homenageando o artista plástico Romero Britto e com um samba, no meu entender, apenas correto. A composição de Cláudio Russo e parceiros não consegue atingir o píncaro do que se espera de um samba. Não tem um refrão explosivo, não tem emoção, não tem 'pegada'. Apenas algunas sacadas inteligentes relativas ao homenageado se salvam numa obra meramente descritiva. Rogerinho Renascer não comprometeu na gravação, mas a escola buscou se socorrer de um nome de peso. Veio Nêgo, que durou pouco mais de uma semana na Renascer e já está no olho da rua. Só um milagre deverá manter a agremiação de Jacarepaguá no Grupo Especial em 2013. Nota 9,2
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